sábado, 29 de março de 2014











Por que não houve resistência ao golpe militar?

No dia 31 de março, a situação era de perplexidade. Não se sabia o que estava acontecendo e a correlação de forças. Os mais otimistas, quando souberam do deslocamento das tropas de Juiz de Fora, diziam: o Kruel ( comandante do 1o. Exército ) vai parar com essa brincadeira. Nada. Foi uma confraternização. Os Grupos dos 11, que Brizola dizia haver em todo o Brasil, sumiram feito pó. As armas que os trabalhadores e estudantes ficaram esperando para a resistência, não chegaram nunca. Golpe de Estado e resistência não são para amadores. E as esquerdas no Brasil eram um tigre de papel. Desarticuladas e desaparelhadas, não entenderam a grande coligação civil e militar que formou no Brasil, com o apoio dos Estados Unidos para impedir as reformas de base e uma "novo Cuba" no continente latino-americano. O resto é história. Vejam a análise da Carta Maior.



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As análises, rememorações, depoimentos sobre o golpe militar de 1964 e as suas conseqüências se sucedem. Mas é necessário também analisar o outro lado dos acontecimentos de então, o que leva a uma questão espinhosa: por que não houve uma resistência significativa? Vamos considerar algumas alternativas que, se não são ditas explicitamente, sempre rondam os comentários.

1) A personalidade de João Goulart
Este é um dos primeiros argumentos que vêm à tona. Se o homem é ele mesmo e a sua circunstância, a de Jango não poderia ser pior naquele momento. Deprimido pela estampa pública de uma relação conjugal complicada, comprimido entre a radicalização de seu governo com a pregação das reformas de base e a sua situação de latifundiário bem sucedido, o presidente não resistiu à pressão interna. Faltou-lhe o ânimo da luta. Sua decisão de fugir sabotou a possibilidade de se organizar qualquer resistência.

Em 1961 o Brasil vira o maior movimento cívico e popular de sua história, pelo menos desde a Revolução de 1930. A razão desse movimento fora a manutenção da legalidade, com a posse do vice-presidente depois da renúncia de Jânio Quadros. Já naquele momento Jango frustrara as expectativas dos empenhados na campanha pela sua posse, preferindo negociar com os conservadores e liberais do Congresso a aceitação da emenda parlamentarista.

O gesto foi recebido aos gritos de "covarde, covarde", pela multidão concentrada em frente ao Palácio Piratini em Porto Alegre. Jango teve de sair pela porta dos fundos. Em 1964, saiu de novo pela porta dos fundos, desta vez para sempre. Teria sua disposição de resistir alterado o resultado final do golpe? Vá se saber.

2) A imprevidência do governo no setor militar
Este argumento é muito sério e merece uma consideração de peso. As forças armadas, sobretudo o Exército, saíram divididas dos acontecimentos de 1961. Houve uma divisão horizontal, na oficialidade superior, e vertical, pela importância de atitudes da tropa em momentos decisivos, como no impedimento pelos suboficiais de que os jatos da base aérea de Canoas bombardeassem Porto Alegre durante a crise.

Jango, o governo e os militares legalistas não souberam ou não conseguiram, ou não quiseram capitalizar o momento, permitindo que oficiais golpistas permanecessem na ativa e com comandos de tropas significativos. Nos remanejamentos subseqüentes os golpistas, que tinham saído derrotados em 1961, apesar do empate técnico da emenda parlamentarista, ganharam força e posições. O levante dos sargentos em Brasília permitiu que estes fossem presos e desmobilizados. O levante dos cabos e marinheiros, no Rio de Janeiro, às vésperas do golpe, na prática teve o mesmo efeito.

Em 1964 nenhum comando importante estava em poder de oficiais declaradamente legalistas. Jango teve de nomear às pressas o General Ladário Pereira Telles para o comando do III* Exército em Porto Alegre. O gesto, que poderia ser o primeiro passo de uma resistência, serviu na verdade para facilitar a fuga do presidente.

3) A radicalização retórica da esquerda
Este argumento é uma faca de vários gumes. Corta para todos os lados.

Há uma visão conservadora que diz que "se não fosse o Brizola, Jango não teria caído". Brizola, seduzido pela idéia de tomar o poder, radicalizara suas posições, arrastando o cunhado. Havia até uma campanha (quem se lembra?), devido à proibição de que parentes de um presidente se candidatassem ao cargo: "cunhado não é parente, Brizola pra presidente".

Por este lado, é difícil sustentar algum argumento mais convincente. O golpe vinha sendo tramado, preparado, ensaiado, arriscado desde 1950, quando Vargas voltara ao poder com seu populismo inclinado à esquerda. A partir da revolução cubana e dos episódios de 61 ganhara o ímpeto de uma determinação histórica, com o decidido apoio de amplos setores dos governos norte-americanos. A retórica da esquerda serviu apenas de pretexto para mobilizar manifestações como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (pobre família! Pobre Deus! Pobre liberdade!).

Numa outra visão, pode-se ver que se a retórica ia para a esquerda, a esquerda na verdade se esfacelava. Isso é mais consistente. O governo na verdade estava isolado; a esquerda começava um processo de divisões internas que cresceria depois do golpe militar. Esse processo de aprofundamento de divergências descolou-a da perspectiva de esboçar qualquer gesto em defesa do governo. Jango era o herdeiro do "populismo de Vargas" e isso, para a esquerda, era um anátema.

Criou-se uma espécie de visão esquizofrênica que bloqueou de imediato qualquer possibilidade de reação, embora os sinais do golpe fossem visíveis desde o começo do ano. O golpe era indesejável, é certo. Mas livrar-se de um "populista" que poderia entravar o "processo revolucionário" não seria de todo mau.

Com isso as esquerdas, em geral, tiveram uma leitura equivocada do golpe, como se ele fosse apenas "mais uma" quartelada latino-americana de pouco fôlego, um tropeço no caminho inflexível da revolução. Além disso, como herança do período do Estado Novo, as esquerdas tiveram sempre um flerte bastante animado com os liberais, os de centro e os de direita. Mas em 64 esses liberais (com as honrosas exceções de dignidade e valor) estavam do lado ou dentro mesmo do golpe, com seus jornais, rádios e tevês emergentes.

As esquerdas se viram sós, sem governo, sem pai nem mãe, com um sistema sindical de fato minado pelo populismo e pelegos que queriam na verdade salvar o próprio (pelego) em grande parte dos casos.

As forças à esquerda também se dividiram no plano institucional, e logo onde não podiam se dividir: no Rio Grande do Sul. Na eleição para o governo do estado logo após o episódio da Legalidade, o PTB de Brizola e o Movimento Trabalhista Renovador, de Fernando Ferrari, egresso daquele partido, não chegaram a um acordo e concorreram separados. O PTB lançou Egydio Michaelsen, um político de fraco apelo popular. Ferrari tinha ímpeto e era "o homem das mãos limpas", mas ainda não tinha forças para bater ou galvanizar o PTB. Resultado: o governo foi parar nas mãos do conservador Ildo Meneghetti, autor da famosa frase "nenhuma revolução vai se fazer com o meu sangue", para explicar sua inexplicável fuga para Passo Fundo durante o golpe.

Houvesse um legalista no governo do estado, seria possível galvanizar a Brigada Militar como em 61, e com Ladário no III* Exército daria para montar um embrião de resistência. Ao contrário, tudo ruiu, e só restou, abrindo novo caminho histórico, a radicalização do movimento estudantil e as dissenções que desaguaram na luta armada.

4) A direita aprendeu tudo em 61 e as esquerdas muito pouco ou quase nada
Este é um argumento muito sério. A batalha de 61 foi ganha no campo das comunicações, apesar da censura sobre ele, imposta no centro do país.

Em muitas redações imperava uma fórmula mais ou menos conhecida: uma equipe de esquerda, um diretor de direita. Tais alianças instáveis foram se desfazendo, e a imprensa foi declaradamente para a direita. Nem as esquerdas nem o governo valorizaram devidamente aquilo que lhes levara a neutralizar o golpe em agosto/setembro de 1961.

No Brasil o parque de comunicações era emergente, embora ainda distante do ímpeto que ganharia depois do golpe. E nesse parque montou-se uma barragem de fogo cerrado contra o governo. Criou-se um país ameaçado pelo terror de esquerda, insuflaram-se amplos setores da classe média crendeira, que passaram a acreditar que lhe iam tomar de fato os pingüins sobre as geladeiras recém adquiridas e as próprias geladeiras. Houve jornais e jornalistas que resistiram. Mas foi insuficiente. O governo e as esquerdas perderam em 64 onde tinham triunfado três anos antes.

São lições e meditações sobre o passado. Nossas vidas seriam outras, muito outras, se pelo menos houvesse nem que fosse um mero esboço de resistência em 64. Venceríamos? Perdemos por WO, essa é que a verdade difícil de aceitar.

Flávio Aguiar, articulista do Carta Maior
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O Golpe, 50 anos depois, contado por Frei Betto


A 13 de março de 1964, Jango promoveu um megacomício na Central do Brasil, no Rio, defronte o prédio do Ministério do Exército. Ali, ovacionado pela multidão, assinou os decretos de apropriação, pela Petrobras, de refinarias privadas, e desapropriação, para fins de reforma agrária, de terras subutilizadas. As elites brasileiras entraram em pânico.
28/03/2014

São vivas minhas lembranças da quartelada de 1964. Desde 1962 eu trocara Belo Horizonte pelo Rio. Jânio Quadros, em agosto de 1961, havia renunciado à presidência da República. Jango, seu vice, tomou posse.
O Brasil clamava por reformas de base: agrária, política, tributária etc. No Rio Grande do Sul, o deputado federal e ex-governador daquele estado, Leonel Brizola, cunhado de Jango, advertia sobre o perigo de um golpe de Estado.
Em Pernambuco, Miguel Arraes contrariava usineiros e latifundiários e imprimia a seu governo um caráter popular. Em Angicos (RN), Paulo Freire gestava sua pedagogia do oprimido.
O MEB (Movimento de Educação de Base) dava os primeiros passos apoiado pela ala progressista da Igreja Católica. A UNE multiplicava, por todo o pais, os CPC (Centros Populares de Cultura).
Novo era o adjetivo que consubstanciava o Brasil: cinema novo; bossa nova; nova poesia; nova capital...
A luta heroica dos vietnamitas, o êxito da Revolução Cubana (1959) e o fracasso dos EUA ao tentar invadir Cuba pela Baía dos Porcos (1961) inquietavam a Casa Branca. “A América para os americanos”, reza a Doutrina Monroe. A maioria dos ianques não entende que está incluído no termo “América”  todo o nosso Continente mas só eles são considerados “americanos”.
Era preciso dar um basta à influência comunista, inclusive no Brasil. E tudo que não coincidia com os interesses dos EUA era tachado de “comunista”, até mesmo bispos como Dom Helder Camara, que clamava por um mundo sem fome. Foi apelidado de “o bispo      vermelho”.
Trouxeram dos EUA o padre Peyton, pároco de Hollywood. De rosário em mãos e bancado pela CIA, ele arrastava multidões nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Manipulava-se o sentimento religioso do povo brasileiro como caldo de cultura favorável à quartelada.
A 13 de março de 1964, Jango promoveu um megacomício na Central do Brasil, no Rio, defronte o prédio do Ministério do Exército. Ali, ovacionado pela multidão, assinou os decretos de apropriação, pela Petrobras, de refinarias privadas, e desapropriação, para fins de reforma agrária, de terras subutilizadas. As elites brasileiras entraram em pânico.
Em 31 de março, terça-feira, as tropas do general Olimpio Mourão Filho, oriundas de Minas, ocuparam os pontos estratégicos do Rio. Jango, após passar por Brasília e Porto Alegre, deposto da presidência, refugiou-se no Uruguai. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o comando do país e, pressionado pelos militares, convocou eleições indiretas. A 11 de abril, o Congresso Nacional elegeu o marechal Castelo Branco presidente da República. Estava consolidado o golpe.
A máquina repressiva começou a funcionar a todo vapor: Inquéritos Policiais Militares foram instalados em todo o país; a cassação de direitos políticos atingiu sindicalistas, deputados, senadores e governadores; uma simples suspeita ecoava como denúncia e servia de motivo para um cidadão ser preso, torturado ou mesmo assassinado.
Os estudantes e alguns segmentos da esquerda histórica resistiram nas ruas do Brasil. Foram recebidos a bala. A reação da ditadura acuou seus opositores na única alternativa viável naquela conjuntura: a luta armada. Em dezembro de 1968, o governo militar assina o Ato Institucional nº 5, suprimindo o pouco de espaço democrático que ainda restava e legitimando a prisão, a tortura, o banimento, o sequestro e o assassinato de quem lhe fizesse oposição ou fosse simplesmente suspeito.
Muitos são os sinais de que se vivia sob uma ditadura. Este foi insólito: há no centro do Rio uma região conhecida como Castelo. E, na Zona Norte, um bairro chamado Muda (porque, outrora, ali trocavam as parelhas de cavalos que puxavam os bondes que ligavam a Tijuca ao Alto da Boa Vista).
Em 1964, no letreiro de uma linha de ônibus carioca a indicação: Muda-Castelo. Os milicos não gostaram: o marechal viera para ficar. Pressionada, a empresa inverteu o letreiro: Castelo-Muda. Ficou pior. Cancelaram a linha...
Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.

quarta-feira, 26 de março de 2014

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Cresce o risco de cidades-padrão, sem singularidades ou vida. Mas espalham-se, em contrapartida, mobilizações e estudos teóricos para resgatar ruas e outros espaços urbanos 

As novas cidades estão chegando com novos espaços

Por Mônica C. Ribeiro*, no Le Monde Diplomatique

Em 1967, o arquiteto grego Constantinos Apostolos Doxiadis criou o termo Ecumenópolis, referindo-se à ideia de que, no futuro, as áreas urbanas e as metrópoles seriam fundidas numa única e gigantesca cidade global, em razão da urbanização e do crescimento populacional, num processo de crescimento sem limites. A imagem foi bastante apropriada pela literatura e por filmes de ficção científica.

Em nossa dimensão, as grandes cidades parecem saltadas de uma mesma ficção. Os prédios e ruas que rasgam suas fisionomias cabem dentro de um mesmo molde – de onde se fabricam os skylines homogêneos que se espalham pelo globo. Os problemas gerados por essa homogeneidade, também. Com a migração para os centros urbanos, acentuada a partir da segunda metade do século XX, a escala tornou-se a rapidez para os carros, espaços “introvertidos”, capazes de garantir privacidade e segurança, e a supressão dos chamados espaços públicos.

A cidade moderna foi concebida como uma espécie de máquina, onde fluxos são pensados de maneira a garantir eficiência e rapidez, e casas são “máquinas de morar”, na concepção do arquiteto Le Corbusier. Em 1922, este apresentou a Ville Contemporaine,1primeiro estudo urbanístico estruturado e que trazia já em seu centro as questões da mobilidade. Essa cidade passa a ser o lugar menos aprazível para o flâneur de Baudelaire, tendo seus espaços públicos transformados em “não lugares”, em locais de passagem em função da mobilidade rápida.

Planos de urbanização foram concebidos para organizar as cidades em zonas específicas para cada uso. Em meio a esse desenho, figura o homem. Onde se encaixam suas particularidades, especificidades e singularidades nesse design urbano?

Segundo dados da ONU, mais de 50% da população mundial já vive nas cidades. Estima-se que até 2050 cerca de dois terços da população mundial habitarão áreas urbanas. Essas pessoas se veem obrigadas a moldar seu modo de vida e seus ritmos para se integrar ao contingente que vive na urbe.

Transformar a fisionomia de um lugar numa cidade global tem custos, em especial para as populações que são expulsas de suas moradias em nome do progresso e da especulação imobiliária; expulsas dos modos tradicionais de existir e das formas de interação nesses espaços.

Um dos lugares do planeta onde a urbanização hoje tem se desenvolvido mais rapidamente é a China. No filme The human scale,2 de Andreas M. Dalsgaard, vemos como a mudança faz que se percam muitas das características tradicionais na opção pelo molde-que-já-deu-defeito no Ocidente: construção de centros financeiros, moradias empilhadas nas franjas das cidades, quase nenhum espaço para a interação. As casas tradicionais da China são dispostas em espécies de vilas, chamadas hutongs, e se organizam em torno de pátios e becos. O que acontece quando um corredor, uma esquina ou um beco socialmente compartilhados desaparecem para dar lugar a novos quarteirões remodelados segundo planos urbanísticos modernos?
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Enquanto algumas cidades, principalmente europeias, começam a abrir espaços de convivência para seus habitantes e a reduzir o espaço do carro, as cidades em desenvolvimento ou subdesenvolvidas obtêm financiamentos mundiais para se transformar no antigo modelo. É o caso de Istambul, retratada no documentário Ecumenópolis: cidade sem limites,3 de Imre Azem. Seguindo a orientação do Banco Mundial, a Turquia busca modernizar cidades e orienta seu crescimento com base nas já conhecidas indústrias da moradia, do automóvel e dos serviços, incrementando a presença de corporações internacionais em seu solo. O filme acompanha a história de uma família migrante desde a demolição de seu bairro – onde será construído um condomínio luxuoso, envolto em verde, com piscina e campo de golfe, graças à valorização do entorno causada pela construção de um estádio olímpico – até a luta por moradia a partir desse episódio.4

Jan Gehl é o arquiteto conhecido pela mudança de Copenhague nos anos 1960. Ele observou como as pessoas usavam os espaços e fez uma espécie de mapa de comportamentos. Seu primeiro livro, Life between buildings, publicado em 1972, analisava o comportamento das pessoas no espaço público, usando como laboratório a primeira rua de pedestres da cidade, a Strøget. À medida que carros perderam espaço nas ruas centrais da cidade, que passaram a ser devotadas ao pedestre, a vida pública foi se multiplicando.5

Processos semelhantes ao de Copenhague foram desenvolvidos ou estão em desenvolvimento em outras cidades, que começam a rever a escala e providenciar espaços de convivência, ampliando as áreas para pedestres e ciclistas, considerando, finalmente, o lugar do homem nesse desenho. A cidade de São Paulo vive boa parte desses dilemas. Hoje estamos em processo de revisão do Plano Diretor Estratégico,6 e o escritório de Jan Gehl está envolvido em um projeto de requalificação para o centro da cidade, chamado Centro Diálogo Aberto.7 Simultaneamente a isso, movimentos e pessoas promovem ocupações de espaços de passagem, transformando-os em locais de convívio e promovendo apropriações da cidade. É o caso de mobilizações como A Batata Precisa de Você, Imargem, Hortelões Urbanos, Pedal Verde, Rios e Ruas, Árvores Vivas, entre vários outras, que desenham, espalhadas por diversas regiões – mas de certa forma em conjunto –, uma nova cidade, sob uma nova ótica.

De 20 a 27 de março, salas do circuito de cinema da capital paulista recebem os filmes citados neste artigo e muitos outros, que abordam temas variados, dentro da programação da 3a Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. Serão promovidos também debates com realizadores e especialistas. A programação, totalmente gratuita, está disponível no site do evento: ecofalante.org.br/mostra.

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*Mônica C. Ribeiro é Jornalista e mestre em antropologia

1  Le Corbusier preocupava-se com a cidade da era da máquina, imaginando que para acomodar a crescente população da Europa e do mundo seria necessário criar um novo modelo de assentamento. Os princípios do Plano para a Cidade Contemporânea eram basicamente descongestionamento do centro das cidades; aumento da densidade populacional; aumento das áreas verdes; separação entre usos e unidades de vizinhança; separação entre veículos e pedestres. Mais em:htpp://pessoal.ufpr.edu.br/rolando/arquivos/Le_Corbusier2.pdf .

2  The human scale (A escala humana), produção dinamarquesa de 2012 dirigida por Andreas M. Dalsgaard e inédita em São Paulo, documenta como cidades modernas repelem a interação humana e argumenta que podemos construir cidades de uma forma que leve em consideração necessidades humanas e intimidade.

3  Ecumenopolis: city without limits (Ecumenópolis: cidade sem limites), documentário de 2011 dirigido por Imre Azem e inédito no Brasil, aborda o caminho de Istambul e de outras cidades rumo à globalização.

4  No Brasil, os Comitês Populares da Copa divulgaram um dossiê abordando questões como violação ao direito de moradia, ao direito à informação e à participação nos processos decisórios envolvendo a Copa que se realizará no Brasil este ano e também as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, além de desrespeito à legislação e aos direitos ambientais e trabalhistas. Disponível em: goo.gl/gonvu

5  Informações sobre o trabalho de Jan Gehl podem ser acessadas em: www.gehlarchiects.com .

6  Mais informações em: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/novo-plano-diretor-estrategico/

segunda-feira, 24 de março de 2014



Em tempos de marchas , infelizmente não carnavalescas, pedindo novos senhores das trevas nas portas do nosso mundo como solução para os males de uma sociedade democrática - que sensibilizou umas poucas centenas de pessoas histéricas e mal resolvidas - a visão do cientista político Antônio Lassange para Carta Maior é um bom começo de reflexão, mesmo para psicopatas.


A ditadura e seus psicopatas de ontem e de hoje

Quem marcha em defesa do golpe é gente que esbofeteia cada um dos milhões de brasileiros que foram privados da liberdade por mais de duas décadas neste país.

A ditadura valeu-se de psicopatas. Assim manifestou-se a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, para expressar o impacto do depoimento prestado por um coronel do Exército à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro.

O coronel é Paulo Malhães, especialista em tortura e desaparecimento de corpos durante a ditadura instaurada em 1964.

Em seu depoimento, esse guardião dos infernos mostrou como todo o sistema repressivo montado tinha autorização dos ministros das Forças Armadas, que davam as ordens no país - de forma mais absurda e terrorista entre 1968 e 1974.

Os generais, brigadeiros e comandantes não só  tomaram conhecimento como ordenaram que os procedimentos ganhassem escala.

Mandaram construir e custear os aparelhos, como a Casa da Morte, em Petrópolis, e comprar os instrumentos de tortura. Trouxeram torturadores de outros países para treinar seus subordinados a usar requintes de crueldade.

Ao fim e ao cabo, condecoraram uma legião de psicopatas com medalhas e outras honrarias que já deveriam ter sido cassadas.

Onde quer que estejam, e a dúvida é apenas que parte do inferno lhes foi reservada, as mãos e os nomes dos chefes de todos os sádicos permanecerão eternamente tão sujos quanto os dos que decapitaram, arrancaram as arcadas dentárias, deceparam as falanges dos dedos e praticaram tantas outras atrocidades mórbidas com o intuito de desaparecer com corpos de militantes de esquerda que lutavam contra a ditadura.

Cada ministro das Forças Armadas era sempre rigorosamente informado. Todos eles sabiam quem era preso, qual o método empregado e o resultado dos interrogatórios, por meio de relatórios – onde estarão esses relatórios? Quem os terá queimado ou escondido?

Trechos desse depoimento foram publicados pelo jornal O Globo – um veículo que certamente tem muito a dizer sobre aquele período.

O depoimento dado pelo coronel à Comissão Estadual da Verdade do Rio foi, por sua vez, “dado” com exclusividade por alguém dessa Comissão ao referido jornal. Seria bom que a Comissão depois explicasse seu critério de “doação” de informações públicas para o uso exclusivo por uma empresa privada.

De todo modo, diz o coronel:

"Levamos a ideia do CIE para o Burnier (brigadeiro João Paulo Burnier). Ele mostrou para o ministro (da Aeronáutica, Márcio de Souza Melo), que disse: ‘Poxa, que troço! Então funciona’. Aí, fundou o Cisa (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica. Tanto é que recebi a medalha de Mérito da Aeronáutica. Eu até me senti muito orgulhoso, foi o dia em que eu fiquei mais vaidoso” -  disse o coronel.

Os detalhes contados são preciosos:

“O DOI (Destacamento de Informações de Operações) é o primeiro degrau. Você entra ali, voando. Aí, se brutaliza, passa a ser igual aos outros, mas depois vai raciocinando e se estruturando”.

“Houve uma mudança da porrada para o choque. Você pode dizer: foi uma mudança ruim - foi não. Não deixava trauma, não deixava marca, não deixava nada. Já foi uma evolução. Aí, você vai caminhando, aprende de outros lugares, também de outros países, como é feita a coisa. Então, você se torna um outro personagem, um outro cara e, por causa disto, você é guindado a um órgão superior por ser um cara diferente e agir diferente. Tem muito mais amplitude, tem um universo muito maior, aí você se torna um expert em informações.”

"Aprendi que um homem que apanha na cara não fala mais nada. Você dá uma bofetada e ele se tranca. Você passa a ser o maior ofensor dele e o maior inimigo dele. A rigidez é o volume de voz, apertar ele psicologicamente, sobre o que ele é, quais são as consequências. Isto sim. Tudo isto é psicológico. Principalmente quando houve outros casos, né? Fulano foi preso e sumiu. Ele não é preso em uma unidade militar, ele vai para um lugar completamente estranho, civil, vamos dizer assim, uma casa. Ninguém sabe que ele está lá. Não há registro.”

Remorso? Nenhum:

“Poxa, não. Só perdi noite de sono estudando [as organizações de esquerda]. Até hoje, estudo.”

Até hoje? Bem, talvez hoje o coronel esteja então na reedição da Marcha da Família pela Liberdade, um nome hipócrita para uma reunião pública de defensores de um regime de psicopatas.

Enquanto permanecer existindo um único desaparecido político no país, qualquer um que apoie esse tipo de marcha golpista, seja lá que nome de fantasia ostentar,  patrocina um desfile em desrespeito a qualquer família, não só as que choram seus parentes sem lápide.

Os que marcham em defesa do golpe são gente que fede a religião, mas não acredita em Deus – como diria Mário de Andrade.

É gente que esbofeteia cada um dos milhões de brasileiros que foram privados da liberdade por mais de duas décadas neste país.

Que marchem, mas não ousem tocar suas mãos sujas em nossa democracia, nem pisar sobre nossas consciências.


(*)  Antonio Lassance é cientista político.