O avanço do atraso e o desafio das esquerdas
Do ex-ministro do PSB, Roberto Amaral
Para enfrentar a direita, é preciso lucidez doutrinária,
coragem política e eficiência organizativa. O ponto de partida é a Frente Ampla
As frentes Brasil Popular e a Povo sem Medo promoveram a resistência mais
consequente ao golpe
As esquerdas e o pensamento progressista não podem ficar
atônitos, fitando os céus à espera de sinais de alento no momento em que sofre
aquela que pode ter sido sua mais profunda derrota em nossa curta e acidentada
história republicana. Impõe-se, isto sim, aprender com os revezes, se formos
capazes de interpretá-los.
Trata-se, o processo em curso, de verdadeira debacle não
apenas do ponto de vista eleitoral-aritmético (por certo aquele que mais dói,
embora não encerre toda a questão), tão festejado pela grande mídia, mas
principalmente pelos indicadores ideológicos, bactérias não isoladas e que
permanecerão desgastando o desgastado tecido político.
Com poucas e não significativas exceções, o eleitorado
brasileiro votou, nestas eleições, preponderantemente pela direita ou pela
alienação reacionária do antipoliticismo, que vai dar no mesmo. As esquerdas
perderam substância eleitoral graças a erros crassos e reiterados, cuja
responsabilidade a ninguém pode transferir. Perdeu o apoio do centro
político-eleitoral, que migrou para o conservadorismo e para a direita, como
gritam para ouvidos assustados os números das eleições do dia 30 de outubro.
Eles revelam uma derrota ao mesmo tempo previsível e surpreendente em sua
contundência.
Do esvaziamento eleitoral do PT nenhum outro grupamento do
mesmo campo logrou beneficiar-se. A maior decepção deve ter ficado com o PSOL,
anunciado em prosa e verso como seu beneficiário ao lado de outros candidatos
de menor torque. Espera-se que o partido compreenda o papel histórico que as
circunstâncias lhe ofereceram nessas eleições, aderindo à política de Frente.
O eleitorado independente e grande parte daquele que sempre
optou pela esquerda ou pelo pensamento progressista migraram para constituir o
maior ‘partido’ dessas eleições, a dramática e preocupante, embora claramente
compreensível, emergência do desânimo (abstenção), do desencanto (voto em
branco) e do protesto (voto nulo). Perfazem quase a metade do eleitorado, e em
grande número de casos alcançam votação superior àquela dos prefeitos eleitos.
Esse discurso precisa ser ouvido e entendido: a derrota do PT foi acachapante,
mas nenhum outro partido, exceto o ‘não-partido’, credenciou-se para sucedê-lo.
Como toda e qualquer derrota eleitoral, essa não é
definitiva, como as vitórias tampouco o são (terá finalmente o lulismo
descoberto essa verdade acaciana?). Pode, contudo, perdurar se as esquerdas, a
começar pelo PT, que perde a hegemonia sem ter a quem passar o bastão. Os
petistas não tiverem a coragem e a humildade de proceder uma profunda e
transparente autocrítica, que deve ao País e ao nosso povo há muito tempo. Uma
autocrítica que se espera de igual forma e com igual desprendimento do governo
da presidente Dilma e do presidente Lula.
Não se trata de auto-flagelamento. A autocrítica é devida
aos trabalhadores, aos setores populares e, mais do que que nunca, à juventude.
É preciso passar a limpo o feito e o recusado, como as transformações
estruturais na sociedade, como a reforma politica, a reforma do Judiciário, a
reforma tributária, a reforma agrária e a democratização dos meios de
comunicação de massas. É preciso passar a limpo os últimos 13 anos de política
de centro-esquerda e o papel nela desempenhado pelos partidos e instituições
sindicais e populares.
As esquerdas têm muito a cobrar do Partido dos
Trabalhadores, mas nada ganham com a sua imolação. O PT precisa entender que
está diante de algo mais importante do que seu umbigo, de suas avenças e
desavenças internas, das tricas entre facções e tendências, da redução do mundo
real a uma disputa interna de um poder fátuo, que, se não foram a causa (e não
foram), foram porém um agente desestabilizador no governo e na vida partidária,
na vida política e institucional do País.
Por tudo isso, o pensamento progressista aguarda e cobra a
reorganização do PT. Espera que seu fundador e principal líder assuma o papel
que lhe cabe nessa contingência. O desafio que aguarda o partido, hoje, é maior
do que o de sua criação em 1980.
Entre as muitas causas explicadoras da tragédia de hoje,
para ser revisitada, destrinchada, entendida, há a crise de governança
representada principalmente pelo segundo governo Dilma – é preciso assumi-la
com coragem. Existe uma crise política de governo, uma enciclopédia de erros
cometidos em face das relações entre governo e sindicatos e movimentos sociais.
Há erros clamorosos na construção das alianças partidárias e eleição de
aliados. E o erro central da ilusão da conciliação de classe na qual o lulismo
ingressou, sem a companhia da classe dominante.
Conhecer e identificar esses erros é a conditio sine qua non
para nossa recuperação, pois ignorá-los é a certeza de sua repetição, aí então
fatal. A esquerda precisa revisitar o significado e as consequências da opção
eleitoral e do pragmatismo que não poderiam ser confundidos nem com eleição a
qualquer preço nem com governo de qualquer jeito.
O movimento social, quando não compreendido, gera surpresas,
quase sempre desagradáveis para os condutores políticos. Os que não tiveram
olhos para ver e instrumental teórico para compreender as jornadas de 2013
também não entenderam o claro discurso político representado pelas dificuldades
das eleições de 2014. Adicione-se o fato de, eleitos contra a promessa do neoliberalismo
conservador, havermos, no governo, tentado implantar a política econômica do
adversário – e que tomou livre curso com a consumação golpe. O que se segue é
história lamentável, conhecida e recente, que não carece de relembrança.
Diante dos fatos objetivos, porém, as forças populares, com
os partidos e para além dos partidos, souberam reagir e em seu melhor momento
compreenderam que os desafios impunham, acima de nossos desencontros menores e
quase sempre irrelevantes, a política de Frente.
Foram as frentes, como a Brasil Popular e a Povo sem Medo,
agrupando movimentos como o MST e o MTST, sindicatos como a CUT a CTB, e
partidos do campo das esquerdas que promoveram a resistência mais consequente
ao impeachment. Havia clareza de que estávamos diante de desafio maior: um
golpe de Estado que caminhava para além da deposição de Dilma Rousseff (meta
ostensiva e imediata), porque, mais profundo que o golpe de 1964, o golpe
parlamentar-mediático-judicial de 2016 prescindiu da violência militar e se
julga, hoje, em condições de colher nas urnas o respaldo para a consolidação de
seu projeto: um governo neoliberal-conservador, anti-nacional, anti-popular,
anti-trabalhista, antidesenvolvimentista e profundamente anti-democrático.
As lições deixadas pela política de Frente não podem ser
relegadas a plano secundário. A ameaça do golpe em curso é maior que a de 1964
e tem raízes protofascistas: não podemos dar as costas ao pronunciamento
eleitoral de 2016 e deixar de perscrutar o que pode ser, nesse sentido, 2018. São
exemplares as votações de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na capital fluminense,
de tradição rebelde, o voto popular migrou para o pentecostalismo de direita,
levando a esquerda para um gueto de classe-média e alta nos bairros da Zona
Sul.
Para a integralização do golpe, sem atos institucionais, sem
tanques, tornou-se fundamental destruir as organizações políticas de esquerda,
a começar pelo PT (processo em curso). Além disso, sem mandá-las para o exílio,
é preciso destruir nossas lideranças, e a bola da vez é, consabidamente, o
ex-presidente Lula, vítima de processo mediático-judicial-policial de
desconstrução jamais visto entre nós.
O golpe, repitamos mais uma vez e não pela última vez, não
se esgota no impeachment. É pura e simplesmente uma etapa necessária para a
repressão e a desconstrução de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo,
fundado no aprofundamento das franquias democráticas, no avanço das conquistas
sociais, na emergência das massas, na produção da riqueza nacional e na
distribuição de renda.
O projeto do golpe, com Temer ou sem ele, mas impossível com
Dilma ou Lula, é essa política de terra arrasada contra a democracia, a
independência e a emergência das massas.
Para enfrentar o programa da direita, de exacerbação da
dominação de classe, precisamos de lucidez doutrinária, coragem política e
eficiência organizativa, o que passa pela unidade das forças de esquerda, ponto
de partida de uma política de Frente a mais ampla possível. E já.