sexta-feira, 23 de maio de 2014

Como nascem os preconceitos



Preconceitos e discriminações não nascem na natureza. Brotam em nossas cabeças e contaminam as nossas almas.
22/05/2014
Por Frei Betto

García Márquez, em Doze contos peregrinos, conta a história de um cachorro que, todos os domingos, era encontrado no cemitério de Barcelona, junto ao túmulo de Maria dos Prazeres, uma ex-prostituta.
Com certeza se inspirou nas histórias reais de Bobby, um terrier de Edimburgo, Escócia, que durante catorze anos guardou o túmulo de seu dono, enterrado em 1858. Pessoas comovidas com a sua fidelidade cuidavam de alimentá-lo. O animal foi sepultado ao lado e, hoje, há ali uma pequena       escultura dele e uma lápide, na qual gravaram: “Que a sua lealdade e devoção sejam uma lição para todos nós.”


Em Tóquio, ergueram também uma estátua, na estação Shibuya, em homenagem a Hachiko, cão da raça Akita que todos os dias ali aguardava seu dono retonar do trabalho. O homem morreu em 1925. Durante onze anos o cachorro foi aguardá-lo na mesma hora em que ele costumava regressar. Hoje, a estação tem o nome do animal.


Cães e seres humanos são mamíferos e, como tal, exigem cuidados permanentes, em especial na infância, na doença e na velhice. Manter vínculos de afeto é essencial à felicidade da espécie humana. A Declaração da Independência dos EUA teve a sabedoria de incluir o direito à felicidade, considerada uma satisfação das pessoas com a própria vida.


Pena que atualmente muitos estadunidenses considerem a felicidade uma questão de posse, e não de dom. Daí a infelicidade geral da nação, traduzida no medo à liberdade, nas frequentes matanças, no espírito bélico, na indiferença para com a preservação ambiental e as regiões empobrecidas do mundo.

É o chamado “mito do macho”, segundo o qual a natureza foi feita para ser explorada; a guerra é intrínseca à espécie humana, como acreditava Churchill; e a liberdade individual está acima do bem-estar da comunidade.


O darwinismo social é uma ideologia cujos hipotéticos fundamentos já foram derrubados pela ciência, em especial a biologia e a antropologia. Basta ler os trabalhos do pesquisador Frans de Waal, editados no Brasil pela Companhia das Letras. Essa ideologia foi introduzida na cultura ocidental pelo filósofo inglês Herbert Spencer, que no século XIX deslocou supostas leis da natureza, indevidamente atribuídas a Darwin, para o mundo dos negócios.


John D. Rockfeller chegou ao ponto de atribuir à riqueza um caráter religioso ao afirmar que a acumulação de uma grande fortuna “nada mais é que o resultado de uma lei da natureza e de uma lei de Deus.”

Na natureza há mais cooperação que competição, afirmam hoje os cientistas. O conceito de seleção natural de Darwin deriva de sua leitura de Thomas Malthus, que em 1798 publicou um ensaio sobre o crescimento       populacional. Malthus afirmava que a população que crescer à velocidade maior que o seu estoque de alimentos seria inevitavelmente reduzida pela fome.


Spencer agarrou essa ideia para concluir que, na sociedade, os mais aptos progridem à custa dos menos aptos e, portanto, a competição é positiva e natural. E os que são cegos às verdadeiras causas da desigualdade social alegam que a miséria decorre do excesso de pessoas neste planeta, e que medidas rigorosas de limitação da natalidade devem ser aplicadas.


Nem Malthus nem Spencer se colocaram uma questão muito simples que, em dados atuais, merece resposta: se somos 7 bilhões de seres humanos e, segundo a FAO, produzimos alimentos para 12 bilhões de bocas, como justificar a desnutrição de 1,3 bilhão de pessoas? A resposta é óbvia: não há excesso de bocas, há falta de justiça.


Quanto mais são derrubadas barreiras entre classes, hierarquias, pessoas de cor de pele diferente, mais os privilegiados e seus ideólogos se empenham em busca de possíveis justificativas para provar que, entre humanos, uns são naturalmente mais aptos que outros.


Outrora os nobres eram considerados uma espécie diferente, dotada de “sangue azul”. Como quase não tomavam sol e tinham a pele muito branca, as veias das mãos e dos braços davam essa impressão.

Com a Revolução Industrial, gente comum se tornou rica, superando em fortuna a nobreza. Foi preciso então uma nova ideologia para tranquilizar aqueles que galgam o pico da opulência sem olhar para trás. “Que o Estado e a Igreja cuidem dos pobres”, insistiam eles. E tão logo o Estado e a Igreja passaram a dar atenção aos pobres (e é bom frisar, sem deixar de cuidar dos ricos, que o digam o BNDES e a Cúria Romana), como no caso do Estado de bem-estar social, do socialismo e da Teologia da Libertação, os privilegiados puseram a boca no trombone, demonizando as políticas sociais, acusadas de gastos excessivos, e a “opção pelos pobres” da Igreja.


Preconceitos e discriminações não nascem na natureza. Brotam em nossas cabeças e contaminam as nossas almas.


Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Quanto de barbárie existe ainda dentro de nós?




Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo para a civilização. Mas esse salto ainda não se completou totalmente.
21/05/2014
Por Leonardo Boff

Perversidades sempre existiram na humanidade, mas hoje com a proliferação dos meios de comunicação, algumas ganham relevância e suscitam especial indignação. O caso mais clamoroso, nos inícios de maio de 2014, foi o linchamento da inocente Fabiane Maria de Jesus em Guarujá no litoral paulista. Confundida com uma sequestradora de crianças para efeito de magia negra, foi literalmente estraçalhada e linchada por uma turba de indignados.
Tal fato constitui um desafio para a compreensão, pois vivemos em sociedades ditas civilizadas e dentro delas ocorrem práticas que nos remetem aos tempos de barbárie, quando ainda não havia contrato social nem regras coletivas para garantir uma convivência minimamente humana.
Há uma tradição teórica que tentou dilucidar tal fato. Em 1895 Gustave Le Bon escreveu, quiçá por primeiro, um livro sobre a “Psicologia das massas”. Sua tese é que uma multidão, dominada pelo inconsciente, pode formar uma “alma coletiva” e passa a praticar atos perversos que, a “alma individual”, normalmente jamais praticaria. O norte-americano H. L. Melcken ainda em 1918 escreveu “A Turba” um estudo judicioso sobre o fato e mostra a identificação do grupo com um lider violento ou com uma ideologia de exclusão que ganha então um corpo própro e, sem controle, deixa irromper o bárbaro que que ainda se aninha no ser humano. Freud em 1921 retomou a questão com o seu “Psicologia das massas e a análise do eu”. Os impulsos de morte, subsistentes no ser humano, dadas certas situações coletivas, diz ele, escapam ao controle do superego (consciência, regras sociais) e aproveitam o espaço liberado para se manifestar em sua virulência. O indivíduo se sente amparado e animado pela multidão para dar vazão à violência escondida dentro dele.
A análise mais instigante foi feita pela filósofa Hannah Arendt. Em 1961 acompanhou em Jerusalém todo o processo de julgamento do criminoso nazista Adolf Eichamann por crimes contra humanidade. Arendt escreveu em 1963 um livro que irritou a muitos:”Eichmann em Jerusalém:um relato sobre a banalização do mal”. Ela cunhou a expressão “a banalização do mal”. Mostrou como a identificação com a figura do “Führer” e  as ordens dadas de cima podem levar às piores barbaridades com a consciência mais tranquila do mundo. Mas não só em Eichmann se expressa a barbárie. Também naqueles judeus que extravassavam seu ódio a ele, exigindo os piores castigos, como expressão também de um mal interno.
Que concluimos disso tudo? Que um conceito realista do ser humano deve incluir também sua desumanidade. Somos sapentes e dementes. Em outras palavras: a barbárie, o crime, o assassinato pertencem ao âmbito do humano. Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo para a civilização. Mas esse salto ainda não se completou totalmente.
Carregamos dentro de nós, latente mas sempre atuante, o impulso de morte. A religião, a moral, a educação, o trabalho civilizatório foram os meios que desenvolvemos para pôr sob controle esses demônios que nos habitam. Mas essas instâncias não detém aquela força que possa submeter tais impulsos às regras de uma civilização que procura resolver os problemas humanos com acordos e não com o recurso da violência.
Cumpre reconhecer que vigora em nós ainda muita barbárie. Não diria animalidade, pois os animais se regem por impulsos instintivos de preservação da vida e da espécie. Em nós esses impulsos perduram mas temos condições de conscientizá-los, canalizá-los para tarefas dignas, através de sublimações não destrutivas, como Freud e recentemente, o filósofo René Girard com seu “desejo mimético” positivo tanto insistiram.
Mas ambos se dão conta do caráter misterioso e desafiante da persistência desse lado sombrio (pulsão de morte em dialética com a pulsão de vida) que dramatiza a condição humana e pode levar a fatos irracionais e criminosos como o linchamento de uma pessoa inocente.
Todos pensamos nos linchadores. Mas quais seriam os sentimentos de Fabiane Maria de Jesus, sabendo-se inocente e sendo vítima da sanha da multidão que faz “justiça” com suas próprias mãos? A questão principal não é o Estado ausente e fraco ou o sentimento de impunidade. Tudo isso conta. Mas não esclarece o fato da barbaridade. Ela está em nós. E a toda hora no mundo ela ressurge com expressões inomináveis de violência, algumas reveladas pela Comissão da Verdade que analisa as torturas e as abominações praticadas por tranquilos agentes do Estado de terror, implantado no Brasil.
O ser humano é uma equação ainda não resolvida: cloaca de perversidade para usar uma expressão de Pascal e ao mesmo tempo  irradiação de bondade de uma Irmã Dulce na Bahia que aliviava os padecimentos dos mais miseráveis. Ambas realidades cabem dentro desse ser misterioso – o ser humano – que sem deixar de ser humano ainda pode ser desumano.
Temos que completar ainda o salto da barbárie para a plena humanidade. A situação violenta do mundo atual, também contra a Mãe Terra nos deixa apreensivos sobre a possibilidade de um desfecho feliz deste salto. Só mesmo um Deus nos poderá humanizar. Ele tentou mas acabou na cruz. Um dos significados da ressurreição é nos dar a esperança que ainda é possível. Mas para isso precisamos crer e esperar.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

         O silêncio ao redor

Intelectuais que sempre fizeram o contraponto progressista reagem agora entre a indiferença e a prostração. Jorge Furtado, pergunta: quando o Brasil foi melhor?

por: Saul Leblon



Arquivo

A impressão de que o governo fala sozinho, cercado por um jogral ensurdecedor, ora raivoso, ora repetitivo, mas de qualquer forma  onipresente,  não é  fortuita.
É isso mesmo,  se a percepção se basear  apenas na emissão veiculada pelos jornais, tevês e emissoras de rádio que  ecoam o monólogo  do ‘Brasil aos cacos’.

Mas já foi diferente?  Em 1989, talvez, quando o Jornal Nacional editou o famoso debate final da campanha, às  vésperas do voto? Ou em 2002, quando  George Soros assegurava, com exclusividade para a Folha,  que era  Serra  ou o caos?

Talvez em 2006, sob o cerco do ‘mensalão’? Ou então em 2010, quando a Folha se lambuzou na ficha falsa da Dilma e Serra convocou  Malafaia como procônsul para assuntos relativos a moral e aos bons costumes?

Então o que mudou para que o ar pareça tão mais carregado, a ponto de ser necessário, às vezes, cortar com faca o noticiário para  enxergar  além da derrocada iminente que se anuncia?

Algumas coisas.

Vivemos uma transição de ciclo econômico.

Em parte pela reversão do quadro internacional, em parte pelo esgotamento de suas dinâmicas  internas, o desenvolvimento brasileiro  terá que se repensar para retomar uma trajetória de longo curso.

Trata-se de recompor  as condições de financiamento da economia. E  depurar  prioridades  em direção à maior eficiência logística e melhor qualidade de vida.

Não é café pequeno.

A expectativa provoca arrepios nas  carteiras graúdas.

Não será  mais possível, por exemplo,  prosseguir apenas com o impulso das exportações de commodities, cujos preços triplicaram  no mundo desde 2003  --os do petróleo quadruplicaram, mas  os agrícolas cresceram mais de 50%.

Tampouco a liquidez internacional promete ser tão generosa  a ponto de dissipar as contradições internas  em um jorro de  crédito apaziguador que tudo sanciona.

Os donos do dinheiro precificam as ameaças incrustradas nesse  duplo esgotamento, que escancara a natureza paralisante da hegemonia rentista sobre  o país.

Dispostos a não ceder, operam a plenos decibéis para sufocar a evidência de que seu privilégio entrou na alça de mira de uma encruzilhada histórica.

Aconteceu antes, em 32 e 53 – quase como uma revolução burguesa à revelia das elites; foi resolvido com o patrocínio do capital estrangeiro em 55; reprimido em 64; ordenado ditatorialmente  nos anos 70 e terceirizado aos livres mercados nos anos 90.

A seta do tempo ensaia  um novo estirão.

O desafio, antes  de mais  nada,  é de natureza política.

A coerência macroeconômica da  travessia será  dada por quem reunir  força e consentimento para assumir a hegemonia do processo.

Não por acaso, na abertura do 14º Encontro dos Blogueiros e Ativistas Digitais, nesta 6ª feira, Lula  resumiu tudo isso em uma frase:

‘Sem reforma política não faremos nada neste país’.

E ela terá que ser construída pela rua.  ‘Por uma Constituinte exclusiva’, adicionou o ex-presidente da República:  ‘Porque o Congresso que está aí pode mudar uma vírgula aqui, outra ali. Mas não a fará’.

Não é um capricho ideológico.

Trata-se de dar  consequência institucional às demandas e protagonistas que iniciaram a longa viagem à procura de um outro país, a partir das greves metalúrgicas do ABC paulista, nos anos 70/80.

 E que agregaram mais 60 milhões de brasileiros pobres a esse percurso desde 2003.

Um passaporte da travessia consiste em regenerar a base industrial brasileira.

E tampouco aqui  é contabilidade.

Para a economia gerar empregos e salários de qualidade, ademais de receita fiscal compatível com as urgências sociais e logísticas, é vital recuperar o  principal polo irradiador de produtividade em um sistema econômico.

O pressuposto  para um aggiornamento  industrial é  juro baixo,  câmbio desvalorizado e controle de capitais.

Grosso modo, esse é o  tripé que afronta o outro, da  alta finança, baseado em arrocho fiscal, câmbio livre e juro alto.

Todo o círculo de interesses que orbita em torno do cassino  está  mergulhado até o pescoço na guerra preventiva contra o risco de uma reciclagem subjacente à eleição de outubro.

Essa é uma singularidade  que distingue e radicaliza a presente disputa sucessória  --feita em condições internacionais adversas--  a ponto de tornar o ar quase irrespirável.

Por trás dos ganidos emitidos pelo colunismo isento (ideológicos são os blogueiros)  há um cachorro grande a soprar seu bafo sobre o cangote da sociedade.

O capital rentista.

Ele lucrou,  limpo, acima da inflação, 18,5% em média, ao ano, no segundo governo FHC.

Faturou  11,5%, em média, no segundo governo Lula.

E, já impaciente, entre 3,5% e 5% agora, sob a gestão Dilma.

Estamos falando de massas de forças nada modestas.

Diferentes modalidades de  fundos  financeiros  somaram  um giro acumulado de R$ 2,4 trilhões no Brasil em 2012.

O valor equivale a mais da metade do PIB em direitos sobre a riqueza real  --sem triscar o pé no chão da fábrica.

Não é um país à parte. Mas se avoca   mordomias  equivalentes às desfrutadas pelas tropas de ocupação.

Entre elas, rendimentos sempre superiores  à variação do PIB, portanto, em detrimento de fatias alheias. E taxas de retorno inexcedíveis  -- dividendos  permanentes de dois dígitos, por exemplo--   a impor um padrão de retorno incompatível com a urgência do novo ciclo de investimento que o Brasil reclama.

Não se mantém uma tensão desse calibre sem legiões armadas.

Pelotões de estrategistas, exércitos de consultores, artilharias  acadêmicas, bancadas legislativas, cavalarias midiáticas  e aliados  internacionais  operam  a  seu serviço.

O conjunto  entrou  em prontidão máxima.

Um pedaço da hegemonia que vai ditar  o novo  arranjo macroeconômico  será decidido nas eleições de outubro.

O embate  escorre do noticiário especializado (isento como uma nota de três reais)  para os espaços onde os cifrões são traduzidos em duelos entre o bem e o mal, entre  corruptos e salvadores da pátria,  intervencionistas e liberais, desgoverno  e eficiência.

Daí  são mastigados para o varejo do martelete conservador.

Nesse ambiente de beligerância em que o governo  parece falar sozinho, a explosão de demandas  que buscam  carona na  visibilidade  da Copa do Mundo, apenas reafirma uma transição de ciclo, incapaz de ser equacionado por impulsos corporativos ou bandeiras avulsas, ainda que justas  (leia mais sobre esse tema no blog do Emir).

‘Não vai ter Copa’  figura como o arremedo de uma unidade tão frágil quanto a aritmética subjacente à ideia de que os males do país se resolvem com os  R$ 8 bilhões financiados às arenas do torneio  --que serão pagos, ressalte-se.

No evento da sexta-feira, em São Paulo, Lula lembrou aos blogueiros que desde que começaram as obras  da Copa, em 2010, o governo investiu  R$ 825 bi em saúde e educação.

E, todavia, a escola pública e o SUS persistem com as lacunas sabidas.

O buraco  é mais amplo.

O Brasil se confronta com o desafio de realizar  grandes reformas  que lhe permitam  erguer as linhas de passagem entre o inadiável  e o viável  num novo ciclo de crescimento.

Menos que isso é  dar  à edição conservadora  suprimentos  para martelar  a ideia de uma sociedade  em decomposição.

Durante muito tempo a percolação desse veneno  teve na comunicação do governo um filtro complacente.

Agora se sabe que essa inércia escavou também um corredor contagioso no ambiente cultural, a ponto de tornar adicionalmente  opressivo  o ar desta sucessão presidencial.

Um pequeno exemplo ilustra  os demais.

Em entrevista recente à televisão portuguesa, o cantor Ney Matogrosso esboçou um cenário de terra arrasada  para descrever o Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=DqJ0kF1_oL0. De sobremesa, soltou agudos de visceral rejeição à política, aos políticos e  ao PT.

O problema não é um  cantor  deblaterar contra o governo.

O problema é a ausência de contraponto  ao redor, num momento em que interesses graúdos se empenham em vender a tese de que a melhor saída para o Brasil é andar para trás.

Em diferentes capítulos  da história do país,  o prestígio de seus  intelectuais e artistas  foi decisivo no repto ao cerco asfixiante  com o qual o conservadorismo  tentava, como  agora, legitimar, ou impor,  a receita de arrocho subjacente as suas propostas para os impasses nacionais.

Antes tarde do que nunca, o PT e suas maiores lideranças correm contra o tempo para corrigir o gigantesco erro político que foi subestimar  o papel  de uma mídia  plural na luta pela ampliação da democracia  brasileira .

Passa da hora de acordar também para a necessidade de reativar o diálogo com círculos intelectuais e artísticos, cujo protagonismo  foi  igualmente subestimado por uma concepção   mecânica e economicista de desenvolvimento.

O sequestro  da opinião pública pelo denuncismo conservador   --que radicalizou um clima de indiferença e prostração semeado pelo próprio recuo do PT no ambiente intelectual -- evidencia o  tamanho do equívoco cometido.

Leia, abaixo, a manifestação do cineasta Jorge Furtado (diretor do recém  lançado ‘Mercado de Notícias’ e Urso de Prata em Berlim, em 1990, com ‘Ilha das Flores’)  sobre  esses acontecimentos, que marcam e vão marcar o ar pesado da disputa eleitoral de 2014.

'A mim não enrolam' , diz o diretor gaúcho que questiona em  seu blog a tese de que o Brasil  nunca esteve tão mal: pior em relação a quando e, sobretudo, para quem, argui. http://casacinepoa.com.br/)

O desafio do campo progressista é expandir essa argúcia solitária.

A íntegra do texto de Jorge Furtado:

"Fico triste ao ver artistas brasileiros, meus colegas, tão mal informados.

Imagino que, com suas agendas cheias, não tenham muito tempo para procurar diferentes fontes para a mesma informação, tempo para ouvir e ler outras versões dos acontecimentos, isso antes de falar sobre eles em entrevistas, amplificando equívocos com leituras rasas e impressionistas das manchetes de telejornais e revistas ou, pior, reproduzindo comentários de colunistas que escrevem suas manchetes em caixa alta, seguidas de ponto de exclamação.

Fico triste ao ler artistas dizendo que não dá mais para viver no Brasil, como se as coisas estivessem piorando, e muito, para a maioria. Dizer que não dá mais para viver no Brasil logo agora, agora que milhões de pessoas conquistaram alguns direitos mínimos, emprego, casa própria, luz elétrica, acesso às universidades e até, muitas vezes, a um prato de comida, não fica bem na boca de um artista, menos ainda de um artista popular, artista que este mesmo povo ama e admira.

Em que as coisas estão piorando? E piorando para quem? Quem disse? Qual a fonte da sua informação?

Fico triste ao ouvir artistas que parecem sentir orgulho em dizer que odeiam política, que julgam as mudanças que aconteceram no Brasil nos últimos 12 anos insignificantes, ou ainda, ruins, acham que o país mudou sim, mas foi para pior.

Artistas dizendo que pioramos tanto que não há mais jeito da coisa "voltar ao 'normal '", como se normal talvez fosse ter os pobres desempregados ou abrindo portas pelo salário mínimo de 60 dólares, pobres longe dos aeroportos, das lojas de automóvel e das universidades, se "normal" fosse a casa grande e a senzala, ou a ditadura militar. Quando o Brasil foi normal? Quando o Brasil foi melhor? E melhor para quem?

A mim, não enrolam. Desde que eu nasci (1959) o Brasil não foi melhor do que é que hoje. Há quem fale muito bem dos anos 50, antes da inflação explodir com a construção de Brasília, antes que o golpe civil-militar, adiado em 1954 pelo revólver de Getúlio, se desse em 1964 e nos mergulhasse na mais longa ditadura militar das américas. Pode ser, mas nos anos 50 a população era muito menor, muito mais rural e a pobreza era extrema em muitos lugares. Vivia-se bem na zona sul carioca e nos jardins paulistas, gaúchos e mineiros. No sertão, nas favelas, nos cortiços, vivia-se muito mal.

A desigualdade social brasileira continua um escândalo, a violência é um terror diário, 50 mil mortos a tiros por ano, somos campeões mundiais de assassinatos, sendo a maioria de meninos negros das periferias, nossos hospitais e escolas públicos são para lá de carentes, o Brasil nos dá motivos diários de vergonha e tristeza, quem não sabe? Mas, estamos piorando? Tem certeza? Quem lhe disse? Qual sua fonte? E piorando para quem?"