segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A tragédia de Campos e ocasião de Marina

A morte trágica de Eduardo Campos deve ser lamentada sob todos os aspectos. Se a perda é irreparável do ponto de vista pessoal, ela o é também do ponto de vista político. Campos era o mais promissor dos líderes de uma jovem geração de políticos e vinha forjando sua liderança no contexto de uma singularidade pessoal que não encontra par e paralelo em nenhum dos outros políticos atuais. A formação de líderes autênticos, capazes e virtuosos não depende dos bancos escolares ou de embalagens bem feitas pelo marketing. Depende de um processo de educação (que pode ser empírico) e de uma atividade prática, ambos definidos como experiência vivida que deixa os vincos fundos da singularidade do forjamento da personalidade política do líder.

De pouco serviria Campos ter se formado em Economia sem essa experiência vivida, que começou cedo, ainda na universidade, quando se tornou presidente do Diretório Acadêmico. Começou aí a aquisição e do domínio prático da arte de comandar, sem a qual não existem líderes políticos autênticos e capazes. Não parou mais: aos 21 anos, em 1986, ajudou a planejar a campanha do avô – Miguel Arraes. No ano seguinte torna-se chefe de Gabinete do governo Arraes. Depois vai disputar eleições, torna-se deputado, secretário de estado, ministro do governo Lula e governador de Pernambuco por duas vezes.

Campos estava dando o seu passo político mais importante: projetar a liderança que havia construído em Pernambuco e no PSB para o plano da política nacional. Foram praticamente 30 anos de atividade intensa para forjar e lapidar sua personalidade política e para galgar a condição de candidato à presidência da República. Teve em Arraes, um ícone da esquerda do século XX, uma espécie de Centauro Quíron – o tutor, educador e formador dos heróis antigos, dentre eles o mítico Aquiles.

Teria Campos as virtudes necessárias para ser um líder do tipo inovador, fundador de uma nova ordem política nacional? Difícil dizer, pois na história republicana tivemos apenas um líder com esta capacidade, que foi Getulio Vargas. Recentemente, Fernando Henrique Cardoso e Lula, com todas as suas diferenças, deram início à solução de dois problemas dramáticos do século XX. FHC encaminhou a solução do problema da inflação, que provocou muitas crises políticas e fracassos econômicos no século passado. Lula começou a enfrentar o pior problema da nossa história: as profundas desigualdades e a exclusão social. Passos importantíssimos foram dados nas duas direções, mas ambos precisam ser completados nos próximos anos. O governo Dilma se insere nesse contexto.

O fato é que Campos vinha assumindo um discurso que anunciava a intenção de aperfeiçoar o trabalho de seus antecessores e fazer algo que eles não conseguiram: reformar a ordem política nacional, cheia de vícios e malefícios. Absorvendo aspectos importantes do ideário de Marina Silva, sintetizado na tese da “nova política”, prometeu limpar a política nacional da presença dos Sarneys, dos Renans Calheiros, dos Collor etc. Entre outras coisas, prometia um país mais estável e previsível no seu ordenamento político e jurídico e uma Reforma Tributária, absolutamente necessária, pois o sistema tributário é uma das maiores fontes de injustiças e iniqüidades no Brasil por penalizar os pobres e beneficiar os ricos.

Quando Campos começou a plantar sua candidatura, pensava mais numa projeção para colher os frutos em 2018. Se as circunstâncias o favorecessem em 2014, talvez fosse prematuro, pois o seu projeto não estava plenamente amadurecido. Como bom aluno do Centauro (e talvez aqui o tutor tenha sido Lula), percebeu que precisava construir uma força política própria – o PSB – agregar organização mesmo sem vitórias, mas com avanços cumulativos, para poder alcançar o cume do triunfo um dia. Sem romper inteiramente no plano político, libertou-se da tutela do PT e de Lula para construir seu próprio exército, pois os líderes que não constroem sua força própria e vencem beneficiados pelas forças dos outros tendem ao fracasso, como bem mostrou Maquiavel. 

Percebeu que a ocasião para iniciar essa tarefa era 2014, pois as circunstâncias ofereciam um espaço para construir uma alternativa que fosse capaz de provocar rachaduras na polarização entre PT e PSDB. A deusa Fortuna sorriu-lhe ao oferecer-lhe, mais fruto do acaso do que de um projeto planejado, a oportunidade de agregar força com Marina Silva. Mas como essa deusa é matreira, e às vezes terrível, como foi o caso, aplicou-lhe um golpe definitivo e voltou a sorrir para Marina Silva.

A Ocasião de Marina Silva
Ao não compreender claramente o que Maquiavel havia ensinado e que Lula compreendeu com maestria ao construir o PT como força própria – que somente os profetas armados podem triunfar e que os desarmados fracassam – Marina foi negligente ao construir seu exército, sua força política. Não conseguindo legalizar a Rede, viu-se na contingência de se aliar a um líder mais poderoso do que ela (Eduardo Campos), o que é desaconselhável para quem pretende reformar ou refundar uma ordem existente. Pelo que havia acumulado em 2010, o seu momento seria 2014, mas a falta de força própria a colocou num plano secundário na grande batalha política das eleições presidenciais.

A deusa quis devolver-lhe essa ocasião, esse momento, ao custo de uma tragédia. Mesmo assim, Marina comandará um exército que não lhe é inteiramente fiel. E isto lhe trará problemas, seja no momento da batalha seja no momento do triunfo, na eventualidade de vencer as eleições. Terá que fazer concessões de saída, dando aval a acordos que Campos fizera e que ela não concordava. Ao se aliar a Campos numa posição subalterna, naquele primeiro momento, já perdeu seguidores. Ao assumir a cabeça da chapa, as concessões serão ainda mais profundas e ter-se-á que ver até que ponto elas não descaracterizarão o projeto original da Rede.

Quanto ao panorama político geral, aumenta significativamente o grau de incerteza acerca das eleições e também acerca do cenário de 2015. Aécio Neves e Dilma estão imediatamente ameaçados por Marina, como mostra a primeira pesquisa Datafolha após a tragédia. Dilma aparece com 36% das intenções de voto, Marina com 21% e Aécio com 20%. Num segundo turno, Marina bateria Dilma com 47% contra 43%, A direita política do país, por sua vez, pretenderá fazer de Marina uma candidata de direita, o que é uma tarefa difícil. Se Marina passar para um segundo turno contra Dilma, como reagirão os mercados e aos agentes econômicos? Marina fará ainda mais concessões para ser aceita pelos mercados, sacrificando no altar dos interesses econômicos o ideal da nova política? Se Marina triungar, a lógica diz que haveria perturbações e instabilidade política. Mas em política não há certezas absolutas e Marina, se eleita, não necessariamente fracassaria.


Aldo Fornazieri – Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política.

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