domingo, 26 de outubro de 2014

Voto nulo e o “protesto” da melancolia

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Tão alienada quanto certas manifestações de intolerância que marcaram disputa eleitoral é a atitude passiva de quem espera pelo “candidato ideal”

Por Christiana Paiva de Oliveira
“A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão completamente. (…) O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível (…). Ele se encontra, de fato, tão desinteressado e tão incapaz de amor e realização quanto afirma. (…) Pelo contrário, tornam-se as pessoas mais maçantes, dando sempre a impressão de que se sentem desconsideradas e de que foram tratadas com grande injustiça”.
(Sigmund Freud, 1917 [1915]. p. 278-281).

“Eu não vejo alternativas, todos esses políticos são iguais, incapazes, uma merda. Não tenho opções viáveis de voto, porque o Brasil nunca vai mudar. Não vou votar em ninguém, já que o país só tende a piorar daqui pra frente. Meu voto será nulo pra protestar contra toda essa corrupção e todo esse sistema eleitoral, afinal, o voto não vale nada, pois se mudasse algo, seria proibido”.
Estamos vivendo em meio as reviravoltas das eleições. Dia 26 de outubro, 2014, será seu ápice, com a resposta que nos angustia até então: um dos candidatos à presidência será eleito, por fim. Nesse contexto, pergunta-se: e nós, por onde andamos?

Não raro, encontramos eleitores com discursos calorosos, que insistem em nos convencer sobre o candidato ideal. Ai de quem ousar se aproximar dessa fala sem ceder aos caprichos de quem os profere. Qualquer opinião que se oponha é rechaçada duramente, bem como o espaço para a reflexão, que fica aniquilado. Nos lembram crianças, que ao serem contrariadas, fazem birra: gritam, insistem, e as vezes até partem para a violência. Vemos, por entre notícias¹ e vivências próprias, que o lado mais inóspito existente em nós tem aflorado durante os embates políticos, disseminando o ódio contra uma suposta minoria difusa e descabida. É como se as certezas infantis, com ares onipotentes, fossem incontestáveis.
Por outro lado, visitamos eleitores desencontrados, proclamando a anulação dos votos diante dessa disputa acirrada. Desesperançosos e insatisfeitos, tais eleitores se mostram pessimistas, na insistência de ressaltar apenas o lado negativo que os cerca. Nessas eleições, já experienciamos reviravoltas políticas, discursos de ódio explícitos e informações deturpadas. Seria possível manter uma neutralidade frente a esses fatos? Sendo assim, o que buscam os eleitores, ao insistirem na anulação dos votos?
O discurso dos que defendem tal atitude tem ressoado cada vez mais com caráter melancólico: é letárgico, esvaziado, pincelado por tons acinzentados. Tais sujeitos não veem futuro viável, se afundam em suas lamentações, profundas, com caráter inquestionável. De acordo com Freud, pai da psicanálise, o melancólico se baseia em suas idealizações para tomar uma atitude. No entanto, tem algo que assombra e rege o melancólico, que é a perda.
Estamos falando de um sujeito que faz questão de articular sua incapacidade de conquista ao seu vazio. A ele, faltam dinheiro, perspectivas e habilidades que o instiguem ao sucesso. E há algo aqui que devemos nos atentar, ligado às identificações. Quanto mais a perda se sobressai, mais o melancólico se identifica com ela e se autoflagela. Ele passa a se acusar constantemente, na medida em que se afasta do seu plano ideal – e como a palavra nos revela, impossível de ser alcançado. Estamos, portanto, diante de um crítico em potencial e pessimista.
Há em sua atitude, referente a anulação do voto, um protesto silencioso e acomodado. Aqui, cabe lembrar que por mais árdua que seja a situação do melancólico, mudar requer uma nova busca, ligada a novos investimentos. Concomitantemente, investir toda essa energia requer um grande trabalho, algo que o melancólico abomina. Desse modo, não fiquemos estagnados por essa inércia lamuriante. Rememoremos, pois, nossas conquistas históricas, desprezadas pelos ares da melancolia – e valorizar as vitórias não é aludir ao conformismo, que também nos poda às novas criações.
As “Diretas Já” tem seu mérito para a democracia – que apesar de muitas vezes ser deturpada por configurações políticas adulteradas – marca uma vitória libertadora, pós ditadura militar. É com essa nova perspectiva que o cidadão brasileiro retoma a voz, mesmo que por entre breves sussurros, sobre o segmento político, social e histórico de seu país. Foi através de debates, ações e lutas contra a violência, abuso de poder e respectivas censuras que a mudança foi concretizada. Com isso, temos que cuidar para que o peso da crítica não esmague tais segmentos. Sob o olhar do melancólico tudo fica apequenado, assim como suas vivências, que são massacradas pela sua insatisfação constante.
Onde estaria o ato de protesto dos que defendem o voto nulo, já que este, ao passar de 50% na contagem final, não anula a eleição? Tampouco força o surgimento de uma nova arcada de políticos, ao contrário do que muitos acreditam. É possível compreender que os candidatos à nossa disposição não preenchem por completo nossas expectativas, mas quem, ou o que, estaria qualificado para tamanha idealização? Valorizemos os protestos atuais, os engajados, os torturados e tantos outros que lutaram por nós 30 anos atrás – e que essa fala ecoe para além da nostalgia, para que possamos nos inspirar e prosseguir sempre com novos questionamentos e ações.
Ao optar por um determinado candidato, o melancólico tem que arcar com o peso da sua escolha e com o árduo fardo da responsabilidade que sucede tal atitude. Além disso, a impossibilidade de dedicar seu voto a alguém estaria ligada à irrealizável tarefa de enxergar um ideal nessas eleições, em que ninguém serve como salvador ideal de nossas condições. O melancólico critica e não parte para a ação, espera que o tempo passe e que a situação se modifique, enquanto ele permanece estagnado na lamentação.
Lembremos, por fim, que o voto nulo é, também, uma escolha. O percurso desse texto não alude à generalização, uma vez que tal opção implica num caráter subjetivo. A todo momento, as referências feitas foram ao discurso derrotista e esvaziado, que mina qualquer possibilidade futura. Ou seja, a crítica recai ao posicionamento que não ultrapassa a lamúria, mantendo-se na superficialidade da questão. Se não há candidatos que representem o eleitor, ou se não há propostas viáveis, o voto nulo pode indicar essa abstenção, mas com que peso? É válido destacar que se o cenário político encontra-se assim, cabe pensar – para além das anulações – sobre como os ditos representantes do povo inserem um retrato do nosso atual cenário brasileiro. Cabe a nós, então, criticar e reivindicar, sem contentar-se com a derrota incitada pelo melancólico.
Não pretendo participar da confecção do DSM VI, manual psiquiátrico, mas sim, acirrar discussões e novas reflexões sobre nossas aspirações melancólicas, que nos tomam cotidianamente e nos cegam com nossos próprios ideais.

¹Apoiadores de Aécio agridem blogueiro cadeirante eleitor de Dilma < http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/10/apoiadores-de-aecio-agridem-blogueiro-cadeirante-eleitor-de-dilma.html

Referências Bibliográficas:
Freud, Sigmund (1969). Luto e melancolia. (1917 [1915]). In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago; vol. XIV.
Pragmatismo Político. Apoiadores de Aécio agridem blogueiro cadeirante eleitor de Dilma. Disponível em: < http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/10/apoiadores-de-aecio-agridem-blogueiro-cadeirante-eleitor-de-dilma.html > Acesso em: 19 Out. 2014
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